Temos ódio e nojo à ditadura: 60 anos do golpe civil-militar no Brasil
On 08/04/2024 by adminNa década de 60 e 70, em plena Guerra Fria, a América Latina foi palco de uma série de golpes militares apoiados pelos Estados Unidos, que tinham como objetivo combater uma possível ascensão comunista ao modelo cubano. No Brasil, a Política Externa Independente do presidente João Goulart, popularmente conhecido como Jango, foi vista como uma ameaça ao capitalismo ao estreitar laços com nações comunistas e atuar de maneira alheia aos interesses estadunidenses. No plano nacional, a desapropriação de empresas estrangeiras e a reforma agrária acionaram um alerta vermelho para o embaixador estadunidense Lincoln Gordon, que passou a orquestrar junto aos setores empresarial, político e militar a mudança de regime no Brasil.
Durante os anos que esteve no poder, Jango conquistou o apoio popular para as suas reformas de base, chegando a 70% de aprovação às vésperas de 31 de março de 1964. Ao mesmo tempo, uma campanha anticomunista e contra Jango foi disseminada na TV, rádio e jornais, e também incorporada em diferentes meios culturais como filmes e radionovelas, ambos através do financiamento do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). O Ipes e o Ibad, que por sua vez eram financiados por atores estrangeiros e pelo empresariado brasileiro, também contribuíram financeiramente para as campanhas de mais de 100 npolíticos contra Jango. O cenário brasileiro se tornava cada vez mais polarizado, à medida que Jango lutava pela realização das suas reformas e os setores conservadores se empenhavam numa campanha de oposição.
Tudo chega ao ápice em março de 1964. No dia 13, no Rio de Janeiro, em torno de 200 mil pessoas, na sua maioria trabalhadores, acompanharam o discurso de Jango na Central do Brasil a favor das reformas de base. As medidas propostas tinham como objetivo a redistribuição de renda no Brasil e envolviam desde a nacionalização de empresas petroleiras até a desapropriação de terras em locais estratégicos. Como resposta, no dia 19 ocorreu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, convocada por setores religiosos, ligas femininas e forças da direita. Entre as demandas, a defesa da família, da Pátria, da democracia, da Constituição e da religião, além do pedido de ajuda para as Forças Armadas salvarem o país da ameaça comunista de Jango. A Marcha viria a reunir em torno de 500 mil pessoas nas ruas de São Paulo e ficou marcada como a sustentação civil para uma intervenção militar no país.
Pouco tempo depois, no dia 25, centenas de Marinheiros exigem uma série de medidas institucionais e demonstram o apoio às reformas de base de Jango, evento que fica conhecido como a Revolta dos Marinheiros. Sem obedecer ao Ministro da Marinha, os marinheiros revoltosos negociam o fim da revolta diretamente com Jango e são anistiados, o que gerou ainda maior descontentamento dos setores militares que agora acusavam a Jango de promover a quebra de hierarquia nas Forças Armadas.
O golpe militar tem início na madrugada do dia 31, sob o comando do General Olímpio Mourão Filho. A partir de Minas Gerais, as tropas do exército marcham em direção ao Rio de Janeiro, onde se encontrava Jango, e uma série de comunicações entre as lideranças regionais do exército se passa para discutir o golpe. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos dá início à Operação Big Sam, enviando ao Brasil uma frota de navios de guerra e porta-aviões, além de petróleo e munição para o apoio do setor golpista em caso de uma resistência armada.
No dia 1º de abril, já ciente do golpe, Jango deixa o Rio de Janeiro em direção à Brasília e posteriormente ao Rio Grande do Sul, buscando o apoio do exército gaúcho contra o Golpe. Já à noite, o Senador Moura Andrade convoca senadores e deputados para uma sessão extraordinária no Congresso. A sessão extraordinária tem início às 2h do dia 2 de abril e imediatamente Andrade declara vaga a presidência da República, afirmando que João Goulart havia abandonado o cargo. Como Jango havia assumido a vaga após a renúncia de Jânio Quadros em 1961, a presidência passou para o presidente da Câmara de Deputados, Ranieri Mazzilli. Tem início a Ditadura Cívico-Militar Brasileira.
O primeiro Ato Institucional, de um total de 17 que seriam promulgados durante a Ditadura, permitiu a cassação de mandatos e a suspensão de direitos políticos, além de marcar eleições indiretas para os cargos de Presidente e Vice-Presidente. Entre os cassados, ficava Jango, que se exilou no Uruguai e posteriormente na Argentina, onde faleceu em 1976. No dia 11 de abril o General Castello Branco, que participou de toda organização do Golpe, assumiu a presidência, sendo o primeiro de cinco representantes das Forças Armadas que comandariam o Brasil nos próximos 21 anos.
A primeira fase da Ditadura ficou marcada pela luta democrática contra o regime até a instauração do AI-5, em 1968, que fechou o Congresso e enrijeceu ainda mais o sistema, o que viria a ser chamado de Anos de Chumbo. Sob Costa e Silva e Médici, o Brasil passou pela sua fase mais violenta, com elevados números de desaparecimentos, torturas e assassinatos. A resistência ocorreu pelo meio armado, como por exemplo a Guerrilha do Araguaia, mas foi mais aceita pela via cultural. Durante os anos de repressão, artistas brasileiros utilizaram do seu ofício como ferramenta política de transformação, movimentação e registro. Entre obras de arte, canções, livros, escrita e diferentes tipos de mídias censuradas, os artistas responsáveis foram muitas vezes presos, torturados e obrigados a deixar o país. A canção “Aquele abraço”, de Gilberto Gil, representa a saída do cantor para o exílio em Londres, por exemplo.
De maneira mais institucionalizada, a violação de direitos humanos virou regra sob a Ditadura. É estimado que em torno de 20 mil pessoas, inclusive crianças, foram detidas e torturadas em centros clandestinos chamados DOI-CODI (Departamento de Operações Internas e Centro de Operação da Defesa Interna). Assim como nas demais ditaduras latino-americanas, o governo golpista brasileiro elaborou uma série de ferramentas físicas e psicológicas para a tortura de prisioneiros considerados subversivos com o objetivo de conseguir informações. Os principais meios de tortura foram: choque elétrico, afogamento, espancamento, empalamento, simulação de fuzilamento, queimaduras, isolamento, drogadição e estupro coletivo; e também o desenvolvimento de ferramentas de tortura específicas para a imobilização de presos, como o pau-de-arara-, a cadeira do dragão, a cama metálica, a suspensao e a geladeira.
O regime militar começou a brandear a partir de 1974 a partir da crescente insatisfação popular e do agravamento da crise econômica gerada a partir do “Milagre Econômico”. Sob Geisel (1974-1978) se inicia o processo de abertura lenta e gradual e o fim do AI-5, que é sucedido por Figueiredo (1979- 1985), com o sancionamento da Anistia, a volta dos partidos políticos, a erupção do movimento pelas Diretas Já e as eleições indiretas pelo Congresso. A Ditadura tem fim em 1985, com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney (vice), e deixa como legado 400 mortos, 50 mil pessoas detidas, inflação de 2.000% e dívida externa de 100 bilhões de dólares.
Em 1988, foi aprovada a nova Constituição brasileira, chamada de Constituição Cidadã, amplamente inspirada nos Direitos Humanos e nas garantias do regime democrático de direito. Na sua promulgação, o Presidente da Assembleia Nacional Constituinte Ulysses Guimarães declarou: “Traidor da Constituição é traidor da pátria. (…) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina”.
A falta de justiça transicional revela que o Brasil foi o país que menos investigou, julgou e puniu os crimes da ditadura no Cone Sul. Apenas em 2010, ou seja, 46 anos após o início da Ditadura, foi instaurada a Comissão Nacional da Verdade, responsável investigar e esclarecer as violações de Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988. E somente em 2014, são publicadas uma série de recomendações para a efetivação da justiça transicional no Brasil, que até hoje não foram implementadas. Ou seja, são 60 anos de impunidade.
Entre violências, monumentos, ruas, celebrações e pessoas em cargos de poder, o Brasil de 2024 ainda sofre para deixar os legados da Ditadura para trás e colocar em prática medidas de justiça que respeitem a memória de torturados, desaparecidos e mortos dos 21 anos de terror no país. Portanto, neste dia 1º de outubro de 2024, relembramos os 60 anos do início de um dos períodos mais sombrios da história brasileira e ecoamos o pedido latino-americano por memória, verdade e justiça. Pelos que se foram e pelos que sobreviveram, hoje e sempre: Ditadura nunca mais!
Silveira Pereira, Júlia
Lic en Relaciones Internacionales por la Universidad Federal de Rio Grande do Sul y estudiante de la Maestría en Derechos humanos y Democratizacion en América Latina y el Caribe (CIEP- UNSAM)
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